A música no cinema – Episódio I

A experiência de assistir um filme não se resume ao acompanhamento de sua história (na evolução do roteiro) e às interpretações dos atores. No entanto, para o grande público que frequenta as salas de cinema ou mesmo assiste aos filmes nas mais variadas mídias, é essa a relação desenvolvida. E, ao se prestar a observar o mais óbvio e aparente, a “experiência” de assistir um filme torna-se empobrecida. Numa obra de arte (sim, o cinema é uma manifestação artística, nunca nos esqueçamos) que oferece e reúne vários elementos de admiração, análise e estudo (edição, fotografia, direção de arte, efeitos especiais, trilha sonora, roteiro, etc), observar somente alguns de seus elementos é se contentar com uma fração daquilo que, em última instância, essa obra está preparada para oferecer. O cinema é uma arte coletiva, fruto da reunião de múltiplos talentos e esforços. Um olhar holístico faz-se, portanto, muito importante e necessário.

O cinéfilo maduro sabe que, muitas vezes, um filme se valoriza e se engrandece por elementos técnicos que oferecem subsídios adicionais para a compreensão da obra, incrementando sua leitura, tornando-a mais atraente e sedutora, deixando o espectador instigado a revisitá-la num outro momento.

Neste breve texto, gostaria de discutir um pouco a força da Música para os filmes e a sua decisiva contribuição para a criação de elaboradas e antológicas cenas do universo cinéfilo.

Não quero, neste momento, falar sobre trilhas sonoras originais – compostas especialmente para um filme (assunto que amo, como consumidor voraz de trilhas sonoras, e que pretendo escrever oportunamente) – mas sobre o uso de músicas independentes na composição de trilhas sonoras e, em alguns casos, na contribuição decisiva na estrutura narrativa de alguns filmes verdadeiramente memoráveis.

A sensibilidade do diretor na ligação dos muitos pontos à disposição no universo cultural podem produzir, como um milagre, composições únicas e que nos fazem pensar na combinação acidental de obras, em alguns casos tão temporalmente distantes, em esforços conjugados de rara felicidade.

Portanto, em tom provocativo, cometo a irresponsabilidade de produzir uma lista (nós, cinéfilos, temos uma volúpia irrefreável por elas) de 5 momentos memoráveis da ilustração musical em cenas antológicas:

1º) 2001 – Uma odisseia no Espaço: Kubrick, genial, conta a história da humanidade num take assustador, onde um osso transformado em arma é jogado para o alto por um primitivo hominídeo (na “aurora” do homem) e, após alguns segundos, o plano projeta a narração (e os espectador) para a órbita de um satélite, voando sobre o planeta terra. Kubrick evoca a poderosa abertura do poema sinfônico “Assim falou Zaratustra”, de Richard Strauss e, neste momento, cria a primeira trilha sonora moderna do cinema, no sentido de conferir à música uma responsabilidade além do recurso narrativo e emotivo. No filme de Kubrick, somos conduzidos, apresentados ao futuro por ela. Nesta mesma cena, o genial realizador usa a valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss II, dando um novo sentido para a composição. Ela, que um dia animou os bailes suntuosos de Viena, presta-se agora para musicar a dança tecnológica e futurista do homem no espaço.

2º) Apocalipse Now: O começo inovador do épico de Coppola começa com um plano fixo. Palmeiras de movimentam ao sabor do vento enquanto ouvimos, em rápida progressão, um zunido surdo, que descobrimos ser, após poucos segundos, dos rotores de um helicóptero Bell UH-1 “Huey”, o cavalo da infantaria aerotransportada do exército americano. Na passagem dessa cena tão singular, num elaboradíssimo desenho de som, somos apresentados aos primeiros acordes de “The End”, da Banda The Doors. Parece que Morrison compôs a música seguindo as recomendações expressas de Coppola. A beleza da destruição irracional do homem é mostrada quando uma explosão de Napalm irrompe a cena. Sobressai a voz de Morrison e seu lamento sobre a nossa irracionalidade. “This the end…my only friend, the end…”

3º) Morte em Veza: O arrebatador início do clássico de Visconti começa melancolicamente (seria esse o tom de todo o filme) com a aproximação do barco que transporta Gustav até a cidade de Veneza, ao som do lindo “Adagietto da 5º sinfonia” de Gustav Mahler. E é essa a música escolhida por Visconti para acompanhar e musicar a dor do compositor Gustav. Ela, na verdade, encerra o filme num arco dramático belo e trágico. Lindo.

4º) Apocalipse Now: A memorável cena do ataque dos helicópteros a uma vila vietnamita. Na guerra delirante de Coppola a música é a arma: ao som da ária maior de “A Cavalgada das Valquírias”, da Ópera  “A Valquíria”, de Richard Wagner, o comandante americano vocifera que Wagner assusta os inimigos e causa um terror psicológico dramático. A morte, metalizada na forma de máquinas de matar, voa rasante e bombardeia a vila quase indefesa. A cena mais delirante dos filmes de guerra é também uma das mais inesquecíveis.

5º) Laranja Mecânica: O Kubrick mais subversivo usa e abusa da música erudita, em especial Beethoven, e é divertidíssima a cena onde o diretor nos apresenta o quarto de Alex e, ao som do 1º movimento da 9º sinfonia, mostra elementos jocosos que expressam o próprio caráter do personagem. No entanto, acho linda, pelo seu plano fixo com uma linda profundidade de campo, a cena que Alex espanca os seus Drudges rebeldes ao som da abertura da Ópera “La Gazza Ladra”, de Rossini.

 

O texto já está longo, desmentindo o “breve texto” que escrevi algumas linhas acima. Termino aqui. Existem muitos outros exemplos. Destacam-se, aqui, Kubrick e Coppola, dois mestres do cinema que sempre compreenderam o potencial operístico do cinema.

Voltarei ao tema oportunamente…